Javier Melloni: "É preciso reconhecer que há uma verdade no outro que eu não consigo ver."

PALMA DE MAIORCA
Numa época em que abundam os autoproclamados agitadores da consciência, o jesuíta Javier Melloni Ribas (Barcelona, 1962) poderia ser chamado de um despertador de almas. Ele vive na Gruta de Santo Inácio, em Manresa, Catalunha, há 25 anos, onde dirige o centro de espiritualidade e ministra palestras, cursos e workshops que integram a oração contemplativa cristã com a meditação oriental. O Caminho da Contemplação é o nome dessa modalidade que fez de Melloni uma figura de destaque na Espanha por uma forma mais moderna e integrativa de abraçar a espiritualidade.
Muitas pessoas rejeitam a religião, mas não a espiritualidade. Elas chegam a ela por meio de meditações orientais, que não são dogmáticas.
Doutor em teologia, graduado em antropologia cultural e especialista em diálogo inter-religioso e misticismo comparativo, ele é autor de cerca de vinte livros, incluindo Caminhos para a Transformação e Nós Somos o Segredo deles , seu mais recente.
Lecionou na Faculdade de Teologia da Catalunha e dedicou a vida à pregação do poder curativo do silêncio. O santuário singular onde vive, a 60 quilômetros de Barcelona, foi construído sobre a rocha de uma caverna onde Santo Inácio de Loyola se isolou há quase 500 anos. Foi lá que ele deu origem aos seus famosos Exercícios Espirituais .
Filho de pai italiano e mãe espanhola, Melloni foi ordenado padre aos 18 anos. Sua vocação foi tão precoce que, com apenas três anos de idade, anunciou aos pais que se tornaria padre, exigindo momentos de silêncio, talvez atordoado pelos barulhos de uma casa com cinco crianças, mas também antecipando o que se tornaria o grande tema de sua vida.
Desde jovem, Melloni sentiu-se atraído pelo Oriente. Com pouco mais de trinta anos, morou na Índia por um ano, país ao qual retornou sete ou oito vezes. Antes da primeira viagem, ele se perguntava o que tantos jovens ocidentais buscavam naquela cultura distante. "Eles buscavam uma experiência não dogmática de Deus, respeitosa com cada pessoa", responde hoje. "Tudo o que era considerado rude na minha família, como andar descalço ou comer com as mãos, é o que fazemos lá. Há uma imediatez com a natureza, com a comida, com a experiência íntima e com a vida. Sem mediação. Aqui, entre nós e o chão, há uma sola de sapato que nos protege do frio e da sujeira, mas também nos isola do contato com a terra. Gandhi disse que não há nada mais antiespiritual do que uma cadeira."
– Vamos começar definindo espiritualidade.
– Espiritualidade refere-se à imensidão do intangível. O termo vem de spiritus , que significa ar. É a experiência mais sutil da matéria, e cada religião a interpreta de forma diferente.
O diálogo inter-religioso não é apenas uma posição justa e pacífica, mas também uma preocupação genuína com a verdade que existe no outro, com humildade e coragem.
– Religião e espiritualidade andam juntas?
– Acredito que as religiões são interpretações, nunca esgotadas, do espiritual. Para vivenciá-lo, basta estar vivo. Eu diria que hoje existe uma nova consciência, mais abrangente, que abraça a ciência, a psicologia, as artes e diferentes formas religiosas, interpretando-as de forma não dogmática. É um salto progressivo de consciência em nível global. Acredito que o mundo está mudando. Há polarização e resistência, tanto de alguns políticos quanto daqueles que votaram neles, mas isso mostra precisamente que há uma mudança. Precisamos parar de criticar e temer os políticos e agir de forma diferente. Levar uma vida sóbria e simples, focada no silêncio e no cuidado com a natureza.
– Existe uma espiritualidade secular?
Muitas pessoas rejeitam a religião, mas não a espiritualidade. E a alcançam por meio de meditações orientais, que têm a vantagem de não serem dogmáticas. Cada pessoa dá a Deus o nome ou a forma com a qual se sente confortável. É outra maneira de entrar em silêncio, em um momento de ritmo de vida acelerado. Os católicos a abraçam sem abandonar sua essência, porque a meditação não vai contra o cristianismo.
– Qual a função das religiões, então?
– São interpretações geo-históricas do inefável, do mistério da vida e da morte, do amor e da dor, da conduta ética, etc. São pulmões institucionais para respirar o sagrado, embora os caminhos espirituais não se limitem a isso.
– O que você trouxe da Índia?
– A sacralidade da vida em sua imediatez, sem os dispositivos que construímos para nós mesmos que nos separam da experiência direta de Deus. Quando falamos do Oriente e do Ocidente, estamos falando de duas categorias existenciais; cognitivas também. O que caracteriza esta última é o impulso para transformar o exterior, para desejar e conquistar. O impulso oriental é transformar o interior.
– Você fez uma síntese.
– Bem, eu me senti atraído pelo Zen, mas, estando na Caverna e sendo jesuíta, não pude simplesmente apresentá-lo. Eu tinha que oferecer algo de origem cristã que também fosse aberto. E, nesse sentido, a visita a Manresa de um jesuíta húngaro chamado Franz Jalics [nascido em Budapeste, Jalics lecionou teologia na Argentina, onde passou cinco meses na ESMA, sequestrado pela ditadura militar] foi extremamente importante. O fato de um teólogo com uma longa história de vida contemplativa ter sintetizado Oriente e Ocidente a partir da perspectiva da tradição cristã me fez me reconhecer dentro do meu grupo.
O Papa Francisco pisou fundo no acelerador em algumas questões. Leão XIV continua nessa linha, mas vai desacelerar. Acho que foi a melhor escolha.
– Qual é a diferença entre oração e meditação?
– A oração parte do “eu” da pessoa que ora ao divino “você”, sem que se perceba plenamente quem é esse “eu” que está orando. Em contraste, na meditação, a pessoa se torna consciente do “eu” e do “você”. E nesse “eu” e nesse “você” há uma unidade diferente daquela gerada pela oração. Não há “você” porque não há “eu”. Há um silêncio que transcende o “eu” em um estado de presença, onde não há mais nada a pedir. É um estado de presença que produz uma abertura para além do “eu”.
– Mencione sempre o silêncio.
– O silêncio é necessário para interromper o fluxo obsessivo de pensamentos. Depois de experimentá-lo, você não pode voltar atrás, porque o silêncio é uma experiência iniciática.
– Mas a maioria das pessoas parece não ter tempo para isso.
– Bem, precisamos ser revolucionários e decidir ficar em silêncio, pelo menos uma hora por dia, em vez de assistir televisão ou usar o WhatsApp. O melhor de cada tradição religiosa comunga ali. O que salvará a humanidade é sua capacidade de abraçar a sabedoria de todas as religiões.
– O que queremos dizer quando falamos consciência?
– A consciência não é a mente, que é um produto biológico, neuronal; binária, poderíamos dizer. O grande erro do Ocidente é pensar que mente e consciência são a mesma coisa. Criados à imagem e semelhança de Deus significa que nos foi dada consciência, consciência cósmica, consciência total. E isso está além das religiões e, ao mesmo tempo, dentro das religiões. É a grande novidade e a grande esperança do nosso tempo.
O primeiro encontro com o Padre Melloni aconteceu poucos dias após a morte do Papa Francisco, e ele o relembrou desta forma: "Foi uma vida plena. Acho que tivemos doze anos inesperados, porque, dada a sua saúde, nunca imaginamos que ele poderia estar conosco por todo esse tempo."
– O que você poderia nos contar sobre a chegada de Leão XIV?
– Suas palavras iniciais ressoam comigo: promover uma paz desarmada, desarmante, humilde e perseverante. Desarmada significa não violência. Desarmante, porque não só desarma a pessoa que começa com essa intenção, mas eventualmente infecta a outra pessoa também, se Deus quiser. Humilde, porque não é pretensioso ou arrogante, nem dá sermões a ninguém. E perseverante porque o caminho da não violência é longo, como disse Gandhi. Mas devemos estar convencidos de que há tanta verdade no outro quanto em mim. É muito difícil, mas não há outro caminho. Quando uma parte ataca e faz da outra uma vítima, sabemos que o agressor já foi atacado antes, e é por isso que ataca com tanta força, porque, com medo da agressão que recebeu, tem uma reação compulsiva. É necessário ser capaz de compreender. Porque sem compreensão, também não pode haver paz.
– Pensemos no conflito no Oriente Médio. Como podemos confiar que o desarmamento de um lado levará ao desarmamento do outro?
– Novamente, paz desarmada e desarmante. Se eu realmente me desarmar, também ajudarei a desarmar a outra pessoa. É uma questão de confiança. Persistente e resiliente. Mas tem que ser de ambos os lados. E você tem que começar de algum lugar.
– Você é especialista em diálogo inter-religioso. Onde estamos?
No início deste século, houve um certo boom, uma certa esperança de que as religiões pudessem realmente se encontrar. Mas devo admitir que, vinte anos depois, há um certo cansaço. Qual é o próximo passo para o encontro inter-religioso? Nenhuma religião irá, e não deveria, renunciar às suas próprias crenças. Então, onde podemos nos encontrar? Devemos entender que o diálogo inter-religioso não é apenas uma posição justa e pacífica, mas também um interesse genuíno pela verdade que reside no outro, o que eu não entendo da minha própria perspectiva. Isso requer muita humildade e coragem.
– Você não acha que o dogmatismo das religiões conspira contra esse diálogo?
– Claro, claro, o grande problema com as religiões é que, sendo um caminho em direção ao absoluto, elas transformam o caminho que percorrem em direção ao absoluto em um absoluto. Todas as religiões levam ao mesmo lugar, mas não pelo mesmo caminho. É por isso que cada religião é diferente.
– Uma grande tarefa está à frente das igrejas.
– Isso mesmo. O grande desafio é o problema da identidade. Como posso amar e sustentar a minha própria identidade — seja ela religiosa, mas também cultural, étnica, de gênero, seja qual for — e, ao mesmo tempo, reconhecer a sua? Essa é a grande questão.
– Parece mais uma questão espiritual do que religiosa.
– Sim, é uma questão espiritual, porque se aplica a todos os aspectos da vida de uma pessoa. O problema da religião é a tentação de se apropriar do espiritual. A religião é uma organização comunitária necessária, mas não esgota os caminhos espirituais dos seres humanos. Este deveria ser um momento de humildade para as religiões.
– A Igreja tomará medidas nesse sentido?
– Você está dando. Mas considere que é uma Igreja com mais de um bilhão de pessoas. Somos muitos. Eu entendo que a Igreja é chamada a ser uma comunidade de comunidades. Uma pertença ampla, geral, global, atenta à aceitação das diferenças.
– Parece algo distante. Focos de guerra continuam surgindo pelo mundo.
– Nunca antes foi tão necessário um profundo reconhecimento de que existe uma verdade no outro que não consigo ver e que preciso aceitá-la para que haja paz duradoura. É disso que se trata o diálogo.
– A Igreja também enfrenta outros desafios: a presença das mulheres, a diversidade sexual, a separação…
– Bem, acho que precisamos perder o medo. Temos que viver a vida ao máximo, com todo o nosso potencial, e ouvir a cada momento a resposta apropriada necessária. Por trás dos tabus, escondem-se os medos. Precisamos refletir sobre a diferença entre Jesus e os fariseus. Os fariseus, que eram os líderes religiosos da época, eram pessoas boas que se separavam do impuro para manter a pureza. É exatamente isso que "fariseu" significa: separado. Mas é claro que uma pessoa que se separa de tudo tem medo de tudo. Uma instituição como a Igreja Católica, que vive nessa grande diversidade de mais de um bilhão de pessoas, deve garantir a unidade, mas também a integração. Porque não podemos esperar para mudar até que todos concordemos, porque então nunca mudaremos nada.
– O senhor acha que este Papa dará continuidade às mudanças iniciadas pelo seu antecessor?
– O Papa Francisco acelerou o passo em algumas questões. Leão XIV está no mesmo caminho e continuará, mas será mais cauteloso. Ele irá um pouco mais devagar. Acredito que a melhor pessoa possível foi escolhida.
– O que você pensa sobre experiências de quase morte?
– Fundamentalmente importantes, indispensáveis. Hoje, são um ponto de encontro para a espiritualidade, a psicologia, a biologia, a neurologia. Tudo isso está cada vez mais aberto. Teremos cada vez mais ferramentas para descobrir que o aqui e o ali não são tão separados quanto pensávamos. Há muitas portas de acesso para o além, daqui e de lá para cá.
– Você já passou por isso?
–Sim, mas não vou além disso.
– O céu e o inferno existem?
-Claro.
- Onde eles estão?
–Criamos continuamente o céu ou o inferno com nossas reações. Há uma bela história Zen. Havia um guerreiro preocupado com todas as pessoas que havia matado e com o tema do céu e do inferno. Um amigo o enviou para consultar um velho e sábio eremita. “O inferno realmente existe? O céu existe? Ou é uma invenção nossa?”, pergunta o guerreiro, vestido com suas melhores roupas. O sábio pergunta o que ele faz. “Vejo você vestido de palhaço”, diz ele. “Um palhaço, como? Não vê que sou um capitão do imperador?”, responde o guerreiro, indignado. “Não sei, você me parece um palhaço.” Então o capitão desembainha a espada para cortar sua cabeça. “Vá, agora mesmo você está abrindo os portões do inferno”, diz o eremita. O samurai se acalma e embainha sua espada. “Vá”, diz o velho. “Agora você abriu os portões do céu.”
ESPECIALISTA EM DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
PERFIL: Javier Melloni
Javier Melloni Ribas (Barcelona, 1962) é antropólogo, doutor em teologia e fenomenólogo religioso. Diversas viagens à Índia lhe permitiram conectar elementos do misticismo hindu e cristão.
Jesuíta e estudioso dos Exercícios Espirituais Inacianos, Melloni possui amplo conhecimento dos textos de diversas religiões. Em seu trabalho como guia espiritual, ele integra elementos de diferentes tradições.
Ele é membro do Cristianismo e Justiça e professor da Faculdade de Teologia da Catalunha. Mora no centro espiritual La Cueva de San Ignacio, em Manresa.
Ele fundou o Caminho de Contempación, uma rede de pessoas pela espiritualidade através do silêncio, que promove a oração contemplativa cristã inspirada na proposta do jesuíta Franz Jalics.
Entre outros livros, escreveu "O Um no Múltiplo " (2003), "Relações Humanas e Relações com Deus" (2006), "Vislumbres do Real " (2007), "O Desejo Essencial " (2009), "Vozes do Místico. Convite à Contemplação " (2009) e "O Cristo Interior" (2010), "Rumo a um Tempo de Síntese " (2020) e " Caminhos para a Transformação" (2025).
Seu último livro é We Are His Secret (Herder, 2025), que postula que a própria realidade é uma manifestação de Deus.

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